Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
Outrora.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...
Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Álvaro de Campos
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração
Augusto Gil, Luar de Janeiro
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Miguel Torga
Choram desde o Dia em que os humanos os confrontaram
Tomando para si mesmos o controle das suas vidas
Por essa altura surge-lhes um poderoso aliado
Que expelido do Espaço
Aqui encontra terreno fértil às suas ambições.
Desprotegidos, depois de a seu lado lutarem
Hoje são pasto emocional de um "Deus" expelido
Os homens não amam mais os "Deuses"
Amam um homem
Que se intitula Deus.
"Demos" ambicionou tomar conta da Galáxia só p'ra ele
Fazer dela o seu domínio exclusivo
E, conseguiu
Conseguiu vencer
No pequeno globo antes protegido por seres da Essência Cósmica.
Choram os "Deuses" a sua derrota
Choram os "Deuses" os homens ambiciosos
Que se juntaram ao Pérfido Vingador
Choram os "Deuses" toda a Humanidade
Que esquecida
Rasteja na baba viscosa largada por toda a terra
De um "Deus" único
Vindo de longe
De muito longe...
Choram os "Deuses", a sua própria existência
Quando pela eternidade fora
Vão vivendo uma vida indesejada
Longe dos seus
Choram cada humano que com eles se cruza e diz que não entende
Que não os conhece
Que eles não são "deuses"
São homens...
Choram a diferença
A Indiferença
O desprezo e a arrogância
O desamor e a falta de entendimento
Numa terra que decidiram nos primórdios adoptar.
Porque se não foram embora
Acompanhando os seus irmãos
E...
Insistiram em ficar
Para lutar
Lutar na sombra
Sem Glória
Sem conforto
Sem Amor
Perderam até hoje
E, perderão sempre
Porque nunca se entregaram
Ou entregarão
Aos que aqui estão
E... choram
Choram sempre
O Desamor
A Mentira
E... a dor
Choram a grandeza da sua pequenez
E, da sua perda.
Saudade
Saudade de mais um tempo
De
Cada tempo que foi mais um tempo que passou.
A Casa ficou distante
Cada vez mais distante
Chora "deus" a tua incompreensão
Por tão grande piedade
Morres às mãos daqueles que vivem por ti verdades inacabadas
Incompletas...
Parem as lágrimas dos "deuses" menores
Que querem continuar a ser o que são
Nada!
Lazulli, da CasadeCristal.
É possível falar sem um nó na garganta
É possível amar sem que venham proibir
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetecer dizer não grita comigo: Não.
É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
Manuel Alegre, O canto e as armas